Rousseau e a vontade geral Sir Anthony Kenny Tradução de Célia Teixeira. **************************************************************************************************************************************************************************************************************************************************************************************************************************** Quando Rousseau começa por dizer “O homem nasce livre, mas em toda a parte encontra-se acorrentado”, quem leu o seu trabalho anterior sobre o efeito corruptor da civilização irá muito provavelmente pressupor que as correntes são as instituições sociais, e que estamos prestes a ser encorajados a rejeitar a ordem social. Em vez disso, é-nos dito que é um direito sagrado, a base de todos os outros direitos. As instituições sociais, pensa agora Rousseau, libertam em vez de escravizar. ******************************************************************************************************************************************************************************************************************************************************************************************************************************************************************************************************************************************************************************************* Tal como Hobbes e Locke, Rousseau parte de considerações acerca dos seres humanos no estado de natureza. A sua perspectiva acerca desse estado, de acordo com os seus pensamentos posteriores acerca do bom selvagem, é mais optimista do que a de Hobbes. No estado de natureza os homens não são necessariamente hostis entre si. São motivados pelo amor-próprio, seguramente, mas o amor-próprio não é o mesmo que o egoísmo: pode ser combinado, tanto nos humanos como nos animais, com a empatia e a compaixão pelos nossos companheiros. Num estado de natureza um homem só tem desejos simples e animais: “os únicos bens que reconhece no mundo são a comida, uma fêmea e dormir; os únicos males que teme são a dor e fome”. Estes desejos não são tão inerentemente competitivos como o é a procura do poder em sociedades mais sofisticadas. Rousseau concorda com Hobbes, contra Locke, que num estado de natureza não há direitos de propriedade e, consequentemente, também não há justiça nem injustiça. Mas à medida que a sociedade se desenvolve a partir do seu estado primitivo, a falta de tais direitos começa a ser sentida. A cooperação económica e o progresso técnico tornam necessária a formação de uma associação para a protecção das pessoas e das posses dos indivíduos. Como poderá isto ser feito, permitindo ao mesmo tempo que cada membro da associação permaneça tão livre quanto o era antes? O Contrato Social dá a solução apresentando o conceito de vontade geral. A vontade geral surge quando “cada um de nós coloca a sua pessoa e todo o seu poder em comum sob a direcção suprema da vontade geral e, na nossa capacidade colectiva, recebemos cada membro como uma parte indivisível do todo” (O Contrato Social 1. 6). Este convénio cria uma pessoa pública, um corpo moral e colectivo, o estado ou povo soberano. Cada indivíduo é ao mesmo tempo um cidadão e um súbdito: como cidadão partilha a autoridade soberana, como súbdito deve obediência às leis do estado. O soberano de Rousseau, ao contrário do soberano de Hobbes, não tem qualquer existência independente dos cidadãos contraentes que o compõem. Consequentemente, não pode ter quaisquer interesses distintos dos deles: expressa a vontade geral e não pode desencaminhar-se na procura do bem público. Os homens perdem a sua liberdade natural para apreenderem o que quer que seja que os compele, mas ganham liberdade civil, a qual permite uma estável posse de propriedade. Mas o que é a vontade geral, e como se apura? Não é o mesmo que a vontade unânime dos cidadãos: Rousseau distingue “a vontade geral” da “vontade de todos”. Uma vontade de um indivíduo pode ir contra a vontade geral. “Há muitas vezes uma diferença considerável entre a vontade de todos e a vontade geral. A última apenas diz respeito ao interesse comum, a primeira diz respeito aos interesses que são parciais, sendo esta nada mais do que a soma de todas as vontades particulares” (O Contrato Social 3.3). Deveremos então dizer que a vontade geral deve ser identificada com a vontade da maioria dos cidadãos? Não, as deliberações de uma assembleia popular não são de todo infalíveis: os votantes podem sofrer de ignorância ou ser influenciados pelo interesse próprio dos indivíduos. Parece daqui seguir-se que a vontade geral não pode sequer ser apurada através de um referendo, e isto parece fazer dela uma abstracção sem qualquer valor prático. Mas Rousseau acreditava que poderia ser determinada por plebiscito em duas condições: primeiro, que cada votante estivesse na posse de todos os factos; e segundo, que os votantes não pudessem comunicar entre si. A segunda condição é estabelecida para prevenir a formação de grupos mais pequenos do que toda a comunidade. “É essencial”, escreveu Rousseau, “para que a vontade geral se possa exprimir, que não possa existir uma sociedade parcial dentro do estado, e que cada cidadão deva considerar apenas os seus próprios pensamentos” (O Contrato Social 2. 3). Assim, não apenas os partidos políticos mas também os grupos religiosos deverão ser banidos para que a vontade geral possa encontrar expressão num referendo. É apenas no contexto de toda a comunidade que as diferenças entre o interesse próprio dos indivíduos se neutralizam mutuamente e se produz o interesse próprio do povo soberano como um todo. Rousseau não é, em princípio, um entusiasta da separação dos poderes. A soberania do povo, diz, é indivisível: se separarmos os poderes dos ramos legislativos e executivos tornamos a soberania quimérica. Contudo, uma divisão prática da responsabilidade segue-se do seu requisito de que o povo soberano apenas deve legislar sobre matérias muito gerais, deixando o poder executivo sobre assuntos particulares nas mãos de um governo que é intermediário entre súbditos e soberano. Mas o governo tem sempre de actuar como delegado do povo, e idealmente uma assembleia popular deverá encontrar-se a intervalos regulares para confirmar a constituição e para renovar ou pôr termo aos mandatos dos portadores de cargos públicos. O tipo de organização proposta por Rousseau apenas parece aplicável a um cantão suíço ou a uma cidade-estado como Genebra. Mas Rousseau insistiu, tal como Montesquieu fizera, que não podemos especificar uma única forma de governo como apropriada em todas as circunstâncias. Contudo, um problema com muito mais ampla aplicação é levantado pela teoria da vontade geral. Um cidadão num estado rousseauniano dá o seu consentimento a todas as leis, incluindo àquelas que são passadas apesar da sua oposição (O Contrato Social 4.2). O que são, em tal constituição política, os direitos das minorias dissidentes? Rousseau diz que o acordo social inclui tacitamente uma garantia de que seja quem for que se recuse a submeter-se-lhe pode ser forçado pelos seus concidadãos a conformar-se-lhe. “Isto nada mais significa senão que será forçado a ser livre.” Se eu votar contra uma medida que acabará por triunfar nas urnas, isto mostra que estava enganado sobre onde o meu verdadeiro bem e a minha genuína liberdade se encontrava. Mas a liberdade de que um malfeitor aprisionado goza é apenas a liberdade bastante rarefeita de ser uma expressão relutante da vontade geral. Apesar das suas preocupações com a vontade geral, Rousseau não era um genuíno apoiante da democracia na prática. “Se houvesse um povo de deuses, estes governar-se-iam democraticamente. Mas uma governação de tal perfeição não é apropriada para os seres humanos” (O Contrato Social 3.4). Numa democracia directa onde a governação é por assembleia popular, a governação dificilmente será tratável e eficiente. É melhor ter uma aristocracia electiva na qual os sábios governam as massas: “não faz sentido arranjar vinte mil homens para fazer aquilo que uma centena de homens seleccionados pode fazer melhor” (O Contrato Social 3. 4). A aristocracia exige menos virtudes nos cidadãos do que a democracia — tudo o que é necessário é um espírito de moderação nos ricos e de contentamento nos pobres. Naturalmente, os ricos farão a maior parte da governação: têm mais tempo livre. Isto parece uma conclusão insípida e vulgar para um livro que começou por pedir à humanidade para partir as correntes. Apesar disso, o conceito de vontade geral teve um potencial revolucionário explosivo. Examinada de perto, a noção é teoricamente incoerente, e na prática, vácua. Não é verdade, em termos lógicos, que se A deseja o bem de A, e B deseja o bem de B, então A e B, conjuntamente, desejam o bem de A e de B. E isto é assim por mais bem informados que A e B estejam, pois pode haver uma incompatibilidade inevitável entre o que é bom para cada um deles. É precisamente a dificuldade em determinar o que a vontade geral prescreve que faz da noção de vontade geral um instrumento tão poderoso nas mãos dos demagogos. Robespierre, no auge do terror revolucionário francês poderia dizer que estava a expressar a vontade geral, e a forçar os cidadãos a ser livres. Quem estava em posição de o contradizer? As condições que Rousseau traçou para a expressão da vontade geral eram as de que todos os cidadãos deveriam estar amplamente informados e que a nenhum par de cidadãos deveria ser permitido concertar posições. A primeira condição nunca poderá ser satisfeita fora de uma comunidade de deuses, e a segunda condição exige, pela sua natureza, que se faça cumprir por uma total tirania. Para o melhor ou para o pior, O Contrato Social tornou-se a bíblia dos revolucionários, e não apenas em França; a influência de Rousseau foi imensa. Napoleão, que não era pessoa de subestimar a sua própria importância, atribuiu a Rousseau igual responsabilidade nas gigantescas mudanças por que a Europa passou no virar do século XVIII para o XIX. “Quem poderá dizer”, perguntou Napoleão quando se aproximava da morte, “se o mundo seria melhor ou pior se nem eu nem Rousseau tivéssemos existido?” Sir Anthony Kenny Retirado de Nova História da Filosofia Ocidental, vol. III: Ascensão da Filosofia Moderna, de Anthony Kenny (Lisboa: Gradiva, 2011) Termos de utilização ⋅ Não reproduza sem citar a fonte

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